- 29 De Outubro de 1936 – 29 de Outubro de 2011 -
Enquadramento
A Prisão do Tarrafal” foi criado em
1936, pelo Decreto-Lei número 26: 539 de
23 de Abril de 1936, no âmbito da
reorganização dos serviços prisionais. Esta prisão foi concebida, dentro
da óptica dos diferentes tipos dos estabelecimentos prisionais. Um
estabelecimento destinado ao cumprimento de penas, na vertente de prisões especiais, do Decreto-Lei número 26:643 de 28 de Maio de
1936.
A história da “Colónia Penal de Tarrafal”
começou verdadeiramente depois de 18 de Janeiro de 1934. É nesta data que,
com a agudização da luta de classes em Portugal, o regime salazarista sente a
necessidade de uma repressão mais dura que a situação política na Alemanha e na
Itália encorajava. É bom lembrar que em Cabo Verde , mais concretamente na Ilha de S.
Nicolau, já existia um Campo de Concentração que servia para o degredo, maioritariamente
dos oficiais do exército detidos na Revolução da Madeira de 1931.
A pena do degredo já existia há
muitos séculos na legislação portuguesa e Cabo Verde não foi o primeiro
território do degredo português. Foram para Ceuta alguns portugueses em 1434 e
1450, e mais tarde, em 1484, foram enviados para S. Tomé e Príncipe alguns
portugueses considerados perigosos para a manutenção da ordem na Metrópole.
Antes das prisões de Cabo Verde, o Decreto-Lei
de 17 de Fevereiro de 1907, criou em Angola uma Colónia Penal militar. Contudo, o Campo de Concentração na
Ilha de S. Nicolau e também os campos de concentração alemães, principalmente o
de Dachau são apresentados por muitos, principalmente pelos presos que
estiveram no Tarrafal, de certa forma como o antecedente que justifica a
criação daquilo que uns designam por Colónia Penal e outros por Campo de
Concentração de Tarrafal. Esta afirmação tinha como base a utilização para a
sua instalação provisória dos mesmos meios e materiais que eram destinados aos referidos
campos. De igual modo, as características e modos arbitrários de detenção dos
indivíduos eram idênticas às de Dachau.
Tarrafal: Colónia Penal ou Campo de
Concentração?
A Colónia, segundo Cândido de
Oliveira e os seus camaradas que estiveram na prisão do Tarrafal “significa
toda a área da Achada Grande, de um quilómetro quadrado, adquirida pelo Estado,
e desgarrada da jurisdição do Governador de Cabo Verde para ficar directamente
dependente do capitão Agostinho Lourenço, Director da PVDE.” Ela era uma zona
autónoma. A entrada na Colónia dependia da Autorização do Director. Ou seja, as
autoridades locais, não tinham jurisdição sobre ela e nem sobre as pessoas que
nela viviam. Portanto, a Colónia no
Tarrafal era uma dependência da PVDE à semelhança da Forte de Caxias, Forte de
Peniche e prisão de Aljube, em
Lisboa. Ela é, no dizer de Cândido de Oliveira, um terreno
feudal, ou um Estado dentro de outro Estado, pertença única e exclusivamente do
Ministério do Interior. Enquanto que Campo,
significa uma pequena parcela da Colónia.
Um quadrilátero cercado pelo arame farpado e Talude. Os presos que passaram
pelo Tarrafal chamaram-lhe, um túmulo, a cidadela dos deportados.
Se compararmos o modo de funcionamento e de tratamento dos presos no
Tarrafal com os dos outros campos de concentração no mundo, principalmente no
Brasil, na Rússia e na Alemanha, mais precisamente na Baviera, Dachau, podemos
encontrar algumas similitudes, que nos levam a afirmar definitivamente que no
Tarrafal houve sim, um Campo de Concentração. No Tarrafal, à semelhança do que
acontecia nesses campos de concentração, a maioria das prisões eram feitas de
forma arbitrária, com o objectivo de eliminar os inimigos dos regimes vigentes
em cada um desses países, os presos trabalhavam em todas as actividades
imaginárias e passavam por todas as formas de arbitrariedades, a maior parte
morria como consequência do excesso dos trabalhos forçados (o que no Tarrafal
foi conhecido por “Brigada Brava”),
dos castigos, tortura e também por falta de assistência médica e medicamentosa;
os reclusos não tinham nenhuma forma de assistência espiritual; era exercida a
censura à sua correspondência; a alimentação não era diversificada, resumia-se
ao milho, feijão, arroz; muitas das prisões eram feitas de forma ilegal, os
reclusos eram desterrados para esses campos, à semelhança do que se passava no
Tarrafal, sem serem julgados e consequentemente sem terem penas ou culpas
formadas. Segundo os presos que passaram por Tarrafal, a título de exemplo,
Cândido de Oliveira, no Tarrafal, a grande maioria, ou quase a totalidade dos
reclusos eram presos preventivos, sem terem sido julgados, presos condenados a
leves penas correccionais pelo Tribunal Militar Especial e presos que já haviam
cumprido as suas penas.
Ainda para enriquecer a ideia de que de facto no Tarrafal funcionou um
verdadeiro Campo de Concentração, podemos basear um pouco no que diz o artigo
número 147 do Decreto-Lei da reorganização prisional. O referido artigo faz
referência aos Manicómios Criminais,
destinados ao internamento dos delinquentes perigosos, com anomalia mental que
os privava da imputabilidade penal. No Tarrafal houve presos que revelaram
anomalias mentais, como os casos de Jaime Francisco e Herculano, e que
continuaram no Tarrafal no mesmo sistema prisional, podendo, na realidade, ser
transferidos para esses estabelecimentos, se os houvesse. Um dos outros pontos
que pode reforçar a ideia de que de facto, no Tarrafal, na prática, funcionou
aquilo que não estava estipulado no Decreto-Lei
que promulgou a reorganização dos serviços prisionais tem a ver com a questão
das celas; senão vejamos: o art. 203 do
referido Decreto diz o seguinte: “as celas destinadas ao isolamento
contínuo deverão ter a capacidade suficiente para assegurar ao recluso as
necessárias condições de higiene e a possibilidade de trabalho dentro da cela”.
Mas no Tarrafal, nada disso acontecia. Em primeiro lugar, nunca existiram celas
de isolamento contínuo e individuais. As celas eram comuns, e não possuíam as
condições mínimas de higiene e de vivência no seu interior.
Posto isso, podemos dizer que no Tarrafal, na prática, funcionou entre
1936 e 1954 um verdadeiro Campo de Concentração, à semelhança daqueles que
foram criados na Europa, na África do Sul e no Brasil, com o intuito de
eliminar da vida política e social todos àqueles que eram contra as ideias e
políticas da Ditadura salazarista. Para que houvesse a Colónia Penal teria que
haver penas, o que de facto não aconteceu. Manuel Firmo, um dos presos do
Tarrafal, diz que as colónias penais eram centros prisionais para onde as
autoridades enviavam os presos de delito comum. No Tarrafal isso não acontecia.
Ou seja, para o Concelho de Tarrafal, mais precisamente para o Campo de
Concentração, eram enviados todos os tipos de presos, quer fossem de delito
comum, quer de delito político. A designação Colónia Penal constituía uma
espécie de eufemismo para que o Governo de Salazar levasse avante o projecto de
erradicação dos seus opositores sem alarmar a opinião pública. A partir destas
reflexões, e com os argumentos que acabámos de apresentar, cremos poder passar
a denominar o estabelecimento prisional do Tarrafal como o Campo de Concentração
de Tarrafal, criado pela Ditadura salazarista e situado na aldeia de Chão Bom,
mais concretamente na zona de Achada Grande de Chão Bom.
No entanto e sem querermos ser patrióticos ou bairristas, podemos dizer à
semelhança do que diz o art. 199 do
Decreto-Lei 26:643 de 28 de Maio de 1936,
que os motivos fortes que levaram à escolha do Tarrafal para a instalação
da prisão tinha a ver com: a sua distância em relação à Cidade da Praia e aos
meios de comunicação; a sua localização numa zona plana de fácil circulação,
perto do mar, com boas e belas baías; e por último, ao clima, um dos raros em Cabo Verde que podia
permitir um bom ambiente aos funcionários de Salazar.
A localização e a
Construção do Campo
De acordo com o Decreto-Lei Número 26: 539 de 23 de Abril de 1936, art. 7, e
segundo a opinião dos presos que passaram pelo Tarrafal, o Campo foi instalado
na zona de Achada Grande e Ponta da Achada de Chão Bom, situada no Concelho de
Tarrafal, da Ilha de Santiago, de Cabo Verde. Manuel Firmino, um dos carrascos
de Salazar, na obra O Pântano da Morte, refere que “é neste quadrilátero,
limitado a norte pela vila do Tarrafal, a sul pela Ribeira Grande de Chão Bom,
a nascente pela estrada Tarrafal – Chão Bom e a poente pelo mar que, na
linguagem oficial, se chama a Achada Grande. No entanto, se consultamos os
naturais do Concelho de Tarrafal, quer os que viveram na altura de
funcionamento do Campo, quer os que nasceram depois do seu encerramento, a zona
referida não é, nem nunca foi Achada Grande, mas sim, Achada de Chão Bom, ou Achada de Pasto, zona destinada
exclusivamente ao pasto dos animais. Achada Grande de Chão Bom, na
opinião da maioria dos naturais do Concelho, fica situada no planalto que faz a
ligação com as zonas do interior do Concelho e em direcção ao Concelho de Santa
Catarina. A construção do Campo foi da inteira responsabilidade do Ministério
das Obras Públicas e Telecomunicações, a que foi conferido todo o poder de
elaborar a sua planta bem como de levar a cabo a sua construção. Esse
Ministério elaborou a respectiva planta, constituída por diferentes pavilhões
para instalação dos serviços e agrupamento dos presos, de acordo com as suas
afinidades políticas. Contudo, o projecto final da instalação definitiva do
Campo tinha que ser aprovado não só por esse Ministério, como também pelo
Ministério da Justiça e pelo parecer da Comissão das construções prisionais.
Todavia, também o Ministério da Guerra, da Marinha e da Colónia, estavam à
disposição dos ministérios acima referidos para que juntos pudessem garantir o
apoio essencial para a instalação e funcionamento dessa prisão. O Ministério da
Justiça, segundo o teor do art. 14 do
Decreto-Lei 26:359, teria, por intermédio da Direcção Geral dos Serviços
Prisionais, o poder de exercer, em relação ao pessoal e serviços do Campo, as
mesmas atribuições de direcção superior, fiscalização e administração que a lei
lhe conferia quanto aos estabelecimentos prisionais da Metrópole. De acordo com
o referido projecto, o Campo de Concentração de Tarrafal teria uma área de 1.700 hectares ,
sujeita a ampliação caso se justificasse. Mas, para tal, teria que ter o
parecer do Ministério da Justiça.
As instalações do
Campo de Concentração
Podemos dividir a instalação do
Campo de Concentração de Tarrafal em duas fases distintas. A primeira fase,
correspondente ao período de 1936
a 1938, com a chegada dos primeiros 150 presos
antifascistas de diversas profissões: camponeses, operários, soldados,
marinheiros das revoltas dos navios Dão,
Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque, estudantes, intelectuais, etc. A
segunda fase compreende a época das construções dos primeiros pavilhões de
pedra e a chegada do médico Esmeraldo Pais de Prata, até ao seu encerramento em
1954. Na primeira fase, as primeiras instalações do Campo eram tendas de lona
sem condições mínimas de habitabilidade e de higiene. Para além disso, nas
barracas não havia luz, não havia ventilação, nem nenhuma protecção contra a
chuva e o sol. Eram doze barracas de lona com sete metros de comprimento e
quatro de largura. Cada barraca tinha a capacidade para alojar doze presos.
Essas barracas funcionaram durante dois anos, até à construção dos pavilhões de
pedra.
O espaço envolvente ao Campo era
limitado por arame farpado em toda a sua volta, de modo a impedir qualquer
contacto com o exterior. Pedro Soares descreve a primeira fase da instalação do
Campo de Concentração de Tarrafal, “como sendo um rectângulo de arame farpado,
exteriormente contornado por uma vala de quarto metros de largura com três de
profundidade. Tem duzentos metros de comprimento por cento e cinquenta de largo
e está encravado numa planície que o mar limita pelo poente e uma cadeia de
montes ao norte, sul e nascente. O único edifício de pedra nesta primeira fase
era a cozinha que entretanto não estava completamente construída. Ainda nesta
fase, à esquerda da porta principal da entrada do Campo, ficava a secretaria,
um barracão de madeira onde se tratava de todos os expedientes administrativos
do Campo. O Armazém constituiu também um dos primeiros edifícios construídos em
madeira no Campo e ficava um pouco mais distante do portão principal que viria
a constituir a futura avenida das acácias.
Como já tínhamos referido, a
segunda fase começa com as primeiras construções de alvenaria e,
consequentemente, com a mudança dos reclusos para as novas instalações dentro
do perímetro do Talude.
Segundo o art. 190, título III, do Decreto-Lei
número 26:643, “os estabelecimentos prisionais serão construídos para que os
reclusos não possam comunicar directamente com a via pública ou com a população
livre”. Entretanto, no Tarrafal durante alguns anos isso não existiu. O cerco
era feito com arame farpado que podia permitir a comunicação com a população do
Concelho e até a fuga, caso fosse bem organizada e planeada. A planta desta
instalação, de acordo com o art. 200 do referido decreto, tinha a capacidade
para 500 presos, sendo constituída por diversos compartimentos. Entretanto, a
protecção forte do Campo era feita com Talude rectangular em jeito de fortaleza
colonial. Nos quatro cantos do Talude, existiam as guaritas dos guardas
auxiliares e dos soldados que faziam a vigilância permanente do Campo.
Fora do perímetro do Talude, mas
dentro do cerco do arame farpado, existiam alguns edifícios, tais como: a
central eléctrica, pequenos edifícios destinados aos sargentos e aos oficiais,
a parada da companhia indígena, as casernas dos soldados, e a despensa, que
servia para o depósito de material. Do lado esquerdo de quem entrava no Campo,
havia três barracas em madeira. Nestas barracas residiam os guardas e num dos
topos de uma delas esteve instalada durante muito tempo a farmácia. Ainda do lado esquerdo do Campo
existia a Frigideira. Era uma construção em cimento armado
que ficava afastada do Campo cerca de 250 metros , ficando
situada sobre a margem da ribeira de Chão Bom. Neste quadrilátero de duzentos
metros de comprimento e cento e cinquenta de largura, cercado por Talude,
encontramos quatro grandes pavilhões de pedra, dois de cada lado do Posto do
Socorros. O Posto de Socorros foi inaugurado em Julho de 1940 e era dividido em
duas partes. Uma servia como sala de espera para os reclusos que pretendiam a
consulta médica e ao mesmo tempo, sala de espera para a sepultura, ou seja,
funcionava como uma verdadeira Morgue do Campo. A outra parte do Posto de
Socorros funcionava como o gabinete do médico.
Os pavilhões tinham cerca de trinta
metros de comprimento e quinze de largura. O pavilhão A, estava dividido em
refeitório e em oficina de latoaria, serralharia e vassouraria. O Pavilhão B
estava dividido em cinco casernas. A primeira caserna funcionava como despensa
ou depósito das malas dos reclusos, enquanto que as outras, B2, B3, B4, B5,
funcionavam como casernas dos reclusos. No Pavilhão C, funcionava a Enfermaria
e o depósito dos que estavam à espera da morte. Para além destes dois
compartimentos, o Pavilhão C possuía mais três casernas. Por último, o Pavilhão
D era constituído por duas grandes casernas, D1 e D2. A D2 servia de Hospital
ou a Mitra do Campo. As casernas dos
pavilhões B e C tinham capacidades para vinte camas, separadas umas das outras,
por trinta centímetros, enquanto que as casernas do pavilhão D, que eram
bastante maiores, tinham capacidade para cinquenta camas.
Em cada cama havia uma pequena
prateleira na parede que servia para guardar os pratos, os talheres, o sabão e
o púcaro, ou seja, servia para guardar os poucos haveres dos reclusos. Para
além dos pavilhões de pedra, existiam dentro do Campo, o lavadouro, “a casa de
banho”, a barbearia, as oficinas de carpintaria, de sapataria e de alfaiataria.
Estas três estavam instaladas em três barracas de madeira. Para além destes
edifícios, entre a cozinha e o refeitório, existia um pequeno campo de jogos.
Por José Soares
Vereador de Cultura, Desportos e
Promoção do Concelho, da Câmara Municipal do Tarrafal
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